12/08/2011

Salve a Mocidade (a primeira vez ninguém esquece)

“Quem nasce na Vila nem sequer vacila ao abraçar o samba”
Noel Rosa

Não nasci em Vila Isabel, bairro onde hoje moro. Talvez por isso vacilei ao abraçar o samba. Mas eis que em um primeiro de maio, em 2008, Beth Carvalho me trouxe à luz – e desde então o samba faz parte de mim.

O samba é meio sobrenatural. Religião, na raiz da palavra, tem a missão de “ligar”. Os homens uns aos outros, e também à transcendência. Não seria heresia dizer, portanto, que o samba também é minha religião. O pai do prazer, o filho da dor, é o grande poder transformador.

Bem, faço todo esse prólogo para explicitar um pouco do que o samba representa para mim. E sobretudo para lhes contar, logo em seguida, que no último fim de semana fui a um dos grandes templos do samba carioca: a quadra da minha amada Mocidade Independente de Padre Miguel.

(Desde 1995 sou Mocidade. Pode parecer contraditório ser fanático torcedor de uma escola de samba desde os sete anos, exaltar todos os seus hinos, saber de cor os enredos das últimas décadas, se emocionar com suas passagens pela avenida, e só me apaixonar pelo ritmo em si mais de uma década depois. E talvez seja uma contradição mesmo. Eu sou uma. Todos somos.)

Quem me conhece sabe que tipo de emoções a visita à quadra de minha escola pode me proporcionar. Acompanhe se quiser:

13:20 – Chego à estação de trem. Minha primeira

vez sobre trilhos também. A composição vai partir apenas 13h47.

13:48 – Entro no trem e sei que agora será quase uma hora de viagem ao meu destino. Até lá, ansiedade (cabe dizer que a viagem de trem daria uma crônica à parte. Deixo para a próxima).

15:00 – Peço a benção a todos os deuses do samba. Cartola e Mestre André à frente. Hora de entrar na quadra. Alô meu povão de Padre Miguel...

15:34 – Já de posse da feijoada, a primeira grande emoção: Ziriguidum 2001 entoado no palco. Na mesa à minha frente, um senhor dribla sua deficiência visual, dribla sua dificuldade em pronunciar palavras, e canta. E chora. E me arrepia.

16:00 – Ainda no palco, a banda toca sambas-enredo de várias escolas. Muitos torcedores destas escolas estão na quadra. Impossível não fazer uma analogia com o quão impensável seria executar um hino de exaltação ao Vasco em uma festa do Flamengo...

16:20 – Ouço a primeira... deixa pra lá!

16:30 – A bateria da Beija Flor chega à quadra e é reverenciada como vencedora do carnaval carioca. Impossível não fazer analogia...

17:00 – Uma família se senta na minha mesa. Dois casais, quatro Independentes. Me dizem um sincero seja bem vindo. Enfim, duas horas depois, me sinto inteiramente em casa.

17:16 – Não preciso conhecer nenhuma outra escola, nenhum outro povo, nenhum outra quadra. Não existe mais quente, estou certo!

18:10 – Estrelinha da Mocidade, a escola mirim, dá show ao som de O Grande Circo Místico. Outra lembrança inevitável: Renato Lage e tudo que ele representa para essa geração que aprendeu a gostar de carnaval (e a ser Mocidade) através da magia que ele fez na avenida. Saudades!

18:30 – E as baianas, no canto do salão, fazem sua festa, depois de terem feito bonito na cozinha. Elas e outros integrantes da escola começam a se montar. Em instantes, Mocidade entra em cena.

18:40 – Expectativa: bateria se posicionando no palco. Adrenalina alta. Lá vem a bateria da Mocidade Independente!

19:06 – A bateria já arrepia tocando Parabéns para Você, amigo. E o que veio a seguir é impossível de ser descrito. O Mestre André sempre dizia / Ninguém segura a nossa bateria / Padre Miguel é a capital / Da escola de samba que bate melhor no carnaval...

20:10 – Me despeço depois de uma hora de show da bateria nota 10. A Beija Flor se prepara para subir ao palco, encerrando a noite com chave de ouro. Mas minha noite não precisa de mais nada a uma hora dessas. O sonho já havia virado realidade. Meu batismo estava completo. Mais do que nunca, pude cantar com imensa verdade: sou Independente, sou Raiz também, sou Padre Miguel, Sou Vila Vintém...


05/08/2011

Meninos do Borel

Quando ele nasceu, a guerra já havia começado há pelo menos 15 anos. Oficialmente, ela nem existe mais. Mas o menino ainda vive a guerra, que nunca foi dele e que ele não escolheu participar.

Para os Meninos do Borel ir à Casa Branca é mais que simplesmente atravessar os poucos metros que separam as duas comunidades, vizinhas. É cruzar um muro simbólico (e, portanto, real) construído sob a lógica de uma guerra que, é importante repetir, os garotos não pediram para entrar, nem ao menos sabem seus reais motivos. Só sabem que é prudente ficar do Lado de Cá do muro.

“Vai que eles ainda estão olhando”, levanta um. “Se eu subir, vão me hostilizar”, acredita outro. “Lá são todos ‘alemão’”, sentencia um terceiro. Medo, dúvidas, temor do que existe do Lado de Lá – e de como o Lado de Cá vai reagir à travessia.

Mas alguns meninos resolveram desafiar a ordem imposta seja lá por quem. Decidiram caminhar alguns metros, cruzar as fronteiras, derrubar o muro. E então, neste processo, descobriram muitos outros muros erguidos para eles. E resolveram derrubar também.

Uma marretada e, bum!, a indiferença começa a ir para o chão. Outra marreta e colocaram o funk no último volume. Mais uma marreta e, pasme!, começaram a “invadir” um Rio de Janeiro que aparentemente não havia sido construído para eles: foram a cinemas, museus, teatros, até mesmo (olha que audácia!) pontos turísticos. Mexeram com as pessoas nas ruas, escandalizaram os mais "puros" e bradaram aos construtores e, sobretudo, aos mantenedores do mito da cidade partida: "Vocês vão ter que me engolir!"

E são tantos os muros erguidos, são tantas as marretas, são tantos os meninos... que não sei onde isso vai dar. Incendiarão a cidade? Unirão os rivais? Tomarão o poder? Não há quem saiba, afinal. Só sei que é bonito de se ver.

Em sua principal obra, Guimarães Rosa profetiza que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Hermano Vianna, o antropólogo de sabedoria ímpar, traduz para a contemporaneidade a frase de Rosa: a periferia vai virar centro. Os meninos do Borel, mais simples, apenas desejam que essa divisão na faça mais sentido. Periferia e centro, favela e cidade, Borel e Casa Branca passem a ser a uma coisa só. Por que não?